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Lentes de contato
na infância

Apesar do grande avanço  da contatologia médica, a adaptação de lentes de contato em crianças ainda é uma área controversa , com muitas dúvidas e dificuldades. Em nosso meio não há estatísticas, mas estima-se que nos Estados Unidos, 10% dos usuários de lentes sejam crianças.

Entre as dificuldades e dúvidas enfrentadas durante a abordagem destes casos, a primeira que aparece ao oftalmologista é saber qual a idade mais apropriada para se iniciar o uso das lentes, bem como o tipo e material mais indicados. Além disso, existe a dificuldade própria em se lidar com crianças, as limitações do exame oftalmológico, bem como a necessidade da atuação dos pais. Outro aspecto importante diz respeito à  parte financeira, já que em crianças, a perda de lentes é frequente e onerosa .

Podemos dividir as crianças em 2 grupos, sendo um composto por aquelas que usam a lente com finalidade cosmética e o outro por pacientes em que a indicação de uso é médica.

No primeiro grupo estão a maioria das crianças, principalmente adolescentes e pré-adolescentes. Com o surgimento de novas lentes, com  novos desenhos e materiais  e principalmente com a venda indiscriminada de lentes coloridas e descartáveis, vem aumentando o número de usuários nesta faixa de idade.

O segundo grupo, menor, inclui aqueles pacientes com indicações médicas para o uso de lentes, tais como afacia mono e binocular, anisometropia, ceratocone, pós-trauma, cirurgia ou úlcera de córnea, ambliopia, nistagmo, albinismo, aniridia ou uso terapêutico.

Os dois grupos apresentam indicações diferentes para o uso das lentes, bem como variações quanto aos tipos e materiais utilizados, técnica de adaptação e seguimento.

ADAPTAÇÃO DE LENTES COM FINALIDADE ESTÉTICA

Não existe, pelo menos teoricamente, uma limitação cronológica para o uso de lentes de contato em crianças. Na verdade, ao se indicar o uso de lentes para uma criança, não se pode esquecer que a participação dos pais será fundamental. Através deles, o oftalmologista irá obter informações a respeito da personalidade da criança, bem como da sua maturidade e responsabilidade, parâmetros importantes na hora de decidir quanto à  indicação ou não da lente.

Os pais e a criança, principalmente o pré-adolescente e adolescente, devem entender que a lente fica em contato direto com o olho, podendo causar problemas graves quando não se segue adequadamente as orientações médicas quanto à forma de uso, bem como  os princípios básicos de higiene e conservação das mesmas. Além disso, as lentes têm custo, envolvem um certo trabalho, exigem controles periódicos e tempo disponível para limpá-las e colocá-las. Muitas vezes, os pais terão que aprender como conservar as lentes, além de inseri-las e retirá-las, para que possam ajudar seus filhos em casa.

Os critérios de indicação e contra-indicação nestes casos não diferem dos adultos. Desde que não haja nenhuma alteração ocular, sistêmica, motora ou psiquiátrica importante que possa interferir com a adaptação, não há motivo para não usar as lentes. Caso haja alguma patologia ocular mais simples, como blefarites, alergias, etc, deve-se primeiro tratá-la e depois prosseguir com a adaptação.

Outro fator importante que deve ser considerado é o custo. Além dos gastos iniciais com as lentes e honorários, as perdas frequentes e o preço dos produtos usados na manutenção podem ser muitas vezes o motivo da interrupção no uso das lentes de contato.

Em relação às ametropias, os critérios são os mesmos usados nos adultos. Quanto maior o grau, mais evidentes serão os benefícios ópticos e estéticos obtidos com as lentes. Portadores de pequenas ametropias e que dependam pouco do uso dos óculos não devem ser estimulados a usar lentes, a não ser para atividades sociais e esportivas.

Muitas crianças, principalmente os adolescentes, procuram por lentes gelatinosas, em geral descartáveis ou coloridas, já que estas são mais conhecidas e mais divulgadas na mídia, além de serem facilmente encontradas em lojas de shopping. Apesar disso, não se deve esquecer que vários destes pacientes são bons candidatos ao uso de lentes duras, não só pela presença de astigmatismos significativos, mas também porque em alguns casos, tanto as lentes rígidas como as gelatinosas podem ser usadas. Dependendo da idade, a aceitação da lente rígida é até maior e como sua óptica é melhor e a chance de complicações é menor, o uso deste tipo de lentes é quase sempre uma boa opção.

Também é comum a procura pelas lentes com o intuito de diminuir o grau da miopia ou para interromper a sua evolução. Como se sabe que isso não acontece, deve-se esclarecer bem o paciente e seus familiares antes de iniciar a adaptação das lentes.

A escolha da lente deve ser feita entre rígidas ou gelatinosas e entre uso diário e uso prolongado. Para tanto, deve-se levar em consideração o tipo de uso a ser feito, ou seja, o número de horas de uso por dia, o número de dias por semana, prática de esportes , etc, além da refração e da ceratometria. Com estas informações, é possível determinar qual a melhor opção para cada caso.

Apesar de menos populares que as lentes gelatinosas, as rígidas tem melhor óptica, maior permeabilidade ao oxigênio e menor chance de complicações. As lentes hidrofílicas, por outro lado, são mais adequadas para o uso ocasional por seu conforto e para prática de esportes por saírem menos do olho.

Em geral, deve-se evitar o uso prolongado em crianças, já que esta forma de uso aumenta muito a chance de complicações. Além disso, as crianças podem ser menos atentas aos cuidados com as lentes, mais tolerantes aos sintomas das complicações e podem perceber menos as alterações na acuidade visual.

No exame prévio à adaptação, a refração deve ser expressa com cilindro negativo e quando necessário deve ser realizada sob cicloplegia. A ceratometria é fundamental, principalmente na adaptação das lentes duras, além de ser um parâmetro importante a ser comparado em futuros exames. Deve ser checada periodicamente, podendo  detectar deformidades corneanas induzidas pela lente ou mesmo o aparecimento e a evolução do ceratocone.

ADAPTAÇÃO DE LENTES COM  INDICAÇÃO MÉDICA

1) Afacia:  A cirurgia precoce  seguida por uma pronta correção óptica é fundamental na recuperação visual de crianças com catarata congênita. A ambliopia é muito frequente e geralmente severa  nestes casos, principalmente nas cataratas unilaterais. Nestes casos, admite-se que o prognóstico visual é muito pobre quando a criança não é operada até o 4o mês de vida. Nas afacias monoculares, o uso de lentes de contato é a melhor opção para correção óptica, já que o uso de óculos é, a princípio, contraindicado, devido à aniseiconia gerada pela grande  anisometropia de índice .

Apesar do grande avanço das lentes intra-oculares, o seu uso em crianças ainda é bastante controverso. Portanto, nestes casos, a lente  de contato ainda pode ser considerada a principal correção visual nos casos de afacia na infância. Nos casos bilaterais a correção com óculos também é possível e sua prescrição pode ser precoce.

Considerando que nas afacias congênitas o tempo é um fator crucial na recuperação visual, a adaptação das lentes de contato deve ser precoce, geralmente após  a segunda  semana de pós- operatório. O ideal é realizar  retinoscopia  e ceratometria ainda no centro cirúrgico com a criança anestesiada, facilitando assim a adaptação da lente. Alguns médicos adeptos do uso prolongado de lentes  fazem a adaptação imediatamente após a cirurgia. Nos casos mais complicados, com maior reação inflamatória, é melhor esperar um tempo maior, evitando assim outras complicações, principalmente  corneanas.

Quando não se dispõe de refração e ceratometria, pode-se usar como parâmetros alguns dados estatísticos. A curvatura  corneana é bem acentuada nos primeiros 6 anos de vida, ao redor 47,50 D, diminuindo para 45,50D dos 12 aos 18 meses, atingindo os valores dos adultos entre 4 e 5 anos de idade. Nos lactentes afácicos com menos de 1 mês, a refração pode chegar a + 35,00 D. Entre 1 e 6 meses está ao redor de 30,00D, entre 6 meses e 1 ano em torno de 27,00D, baixando até 20,00D aos 2 anos e chegando a 12,00D  nas crianças acima de 2 anos.

A escolha do material irá ditar também a forma de uso. Podem ser usadas  lentes rígidas gás-permeáveis ou  gelatinosas, tanto convencionais para  uso diário como  lentes de alta hidratação para uso contínuo. Em nosso meio, devido à dificuldades financeiras, as lentes convencionais são muito usadas nestes casos. Como a refração muda muito rápido e a perda de lentes é frequente, estas lentes tornam-se uma opção mais viável por serem mais baratas. Além disso, em nosso mercado poucas lentes de alta hidratação estão disponíveis nos diâmetros e graus usados nestes casos.

As lentes de silicone também podem ser usadas nestes casos, devido à alta permeabilidade ao oxigênio e à facilidade de manuseio. Porém, a  grande quantidade de depósitos acumuladas na sua superfície, o seu alto custo e a dificuldade em obtê-la em nosso meio tornam o seu uso bastante limitado. Atualmente, a única lente feita 100%  de silicone é a lente Silsoft, fabricada  pela Bausch-Lomb.

A decisão quanto ao tipo de lente irá variar com a idade da criança, sua refração e ceratometria, o nível econômico e capacidade de colaboração dos pais. Quanto maior a criança, maior a resistência à lente dura, o que irá aumentar a chance de se usar lentes hidrofílicas. Em alguns casos, uma lente anteriormente bem tolerada, pode se tornar desconfortável depois dos 2 ou 3 anos de idade, fazendo com que o tipo de lente tenha que ser mudada ou até que se passe a considerar outras formas de correção, inclusive o implante secundário de lentes intra-oculares. A aceitação das lentes rígidas é menor entre 3 e 5 anos de idade.

A técnica de adaptação  vai depender da idade da criança e da lente a ser usada. Nas crianças em que é possível fazer ceratometria e biomicroscopia, a adaptação será semelhante a dos adultos, ou seja, avalia-se a mobilidade e a centralização da lente. Nas rígidas é fundamental observar a troca lacrimal através do exame feito à lâmpada de fenda com o uso de fluoresceina. Quando não é possível obter a ceratometria, usa-se o método da tentativa e erro, com o uso de várias lentes de teste até que se conclua qual a melhor lente para aquele caso. Adaptações muito planas ou muito apertadas devem ser evitadas; alguns autores apertam a lente até que apareçam algumas bolhas e fazem o pedido 0,50 ou 1,0 dioptria mais plana do que a lente testada.

Um cuidado especial deve ser tomado com a sobre-refração no momento do pedido e também nos controles, já que a refração muda muito rapidamente na primeira infância. Devido a isso, dependendo da idade da criança, a troca de lentes pode ser frequente para que a ambliopia possa ser tratada. Além disso, é comum adicionar ao grau final da lente valores entre + 1,00 e + 3,00 dioptrias para favorecer a visão de perto, já que o universo destas crianças é muito próximo. Quando a criança está  sendo alfabetizada, pode-se  indicar o uso de óculos bifocais ou  multifocais.

Após a cirurgia e feita a correção óptica, o tratamento da ambliopia passa a ser o maior desafio, principalmente nos casos de afacia monocular. O uso da oclusão do olho bom é então recomendada em períodos que variam conforme a idade da criança, à semelhança do que é feito nos pacientes  com  ambliopia por estrabismo ou anisometropia. Os pais devem entender bem os objetivos do tratamento para que o acompanhamento seja cuidadoso, evitando assim o comprometimento do olho bom. Apesar de todo empenho dos médicos e da família, o resultado é muitas vezes desapontador, principalmente se houverem outras alterações oculares associadas, como glaucoma, estrabismo, nistagmo, etc. Uma das dificuldades enfrentadas  também é a medida da acuidade visual, principalmente nos crianças  lactentes e pré-verbais.

O acompanhamento do uso das lentes deve ser rigoroso, principalmente nos casos de uso contínuo, em função das complicações possíveis. Os familiares devem ser orientados para procurar o oftalmologista em caso de dor ocular, hiperemia, secreção ou piora súbita da visão.

2) Anisometropia: as grandes diferenças de grau entre os 2 olhos podem ser um causa importante de ambliopia se não for detectada e tratada a tempo.

As anisometropias podem miópicas, hipermetrópicas ou astigmáticas. Apesar de serem menos frequentes que as miópicas, as  hipermetrópicas são muito mais ambliogênicas, já que os míopes  tem a visão de perto preservada, permitindo que o sistema visual continue a se desenvolver. Apesar disso, em grandes diferenças miópicas, a ambliopia pode se instalar, causando grande comprometimento visual, o que nos obriga a corrigi-las quando diagnosticadas.

Quanto a sua origem, podemos classificá-las em axial, quando o problema se deve a uma diferença no comprimento axial dos dois olhos, ou de índice, quando os meios refracionais estão alterados. Alguns autores acham que na maioria dos casos as anisometropias são mistas, ou seja, as duas causas estão presentes. A ceratometria, o fundo de olho com características miópicas e a biometria podem ajudar a confirmar a origem desta condição.

A correção óptica mais indicada vai depender principalmente do tipo de anisometropia. Nas axiais, quando se compara a aniseiconia gerada com óculos e com lente de contato, constata-se que ela será maior com a lente e, portanto, o mais indicado é o uso de óculos. Já nas de índice, e aqui o exemplo mais importante é a afacia monocular, a aniseiconia será menor com as lentes, sendo esta a melhor alternativa para que os pacientes possam fundir as imagens dos 2 olhos. O fato de a anisometropia ser axial não obriga o paciente a estar sempre usando óculos, pois em alguns casos a diferença de peso e espessura das lentes bem como a estética, pode levar o paciente a querer usar lentes, se ele tolerar a aniseiconia.

Nos pacientes com grandes anisometropias, o tratamento da ambliopia deve ser instituído logo após a prescrição da correção óptica mais indicada. Quanto mais precoce o tratamento, melhores os resultados visuais. Nas crianças em idade escolar, se ambliopia for severa, o uso de oclusão fica prejudicado durante o período em que a criança está na escola, além da resistência natural que muitas crianças têm a esta forma de tratamento. Mesmo quando a melhora na acuidade visual não é muito evidente, o uso de lentes de contato nas altas ametropias pode ser útil na preservação da visão periférica e na prevenção dos exodesvios causados por desuso.

3) Alta miopia bilateral : nestes casos, o paciente se beneficia principalmente do aumento no tamanho da imagem retiniana, que pode resultar em melhora da acuidade. Além disso, o aumento do campo visual e a eliminação dos  efeitos prismáticos indesejáveis gerados pelas lentes dos óculos podem ser mais um benefício quando se está com lentes de contato.

4) Ambliopia de desuso: em pacientes amblíopes por estrabismo ou anisometropia, a oclusão é fundamental para a recuperação visual. Nos casos em que a oclusão não é tolerada por motivos psicológicos ou estéticos, pode-se usar lentes de contato sem grau com pupilas pretas ou lentes negativas altas, que irão obstruir a visão ou borrar a imagem do olho bom. As lentes positivas altas não devem ser usadas pois podem permitir a visão de perto.

5) Astigmatismo irregular ou ceratocone:  pacientes com córneas irregulares por cicatrizes ou ceratocone podem apresentar grande melhora de sua acuidade visual com o uso de lentes de contato rígidas. A lente passa a funcionar como a nova superfície óptica anterior do olho e as irregularidades corneanas serão neutralizadas pelo filme lacrimal.

6) Lentes terapêuticas: as indicações para este tipo de uso  são basicamente as mesmas do adulto. Estas lentes são úteis para facilitar a reepitelização da córnea nos casos de abrasão e  na erosão recorrente, no pós-operatório de cirurgias em que há pontos não sepultados ou ainda para proteger a córnea quando existam deformidades palpebrais  ou problemas de lubrificação.

7) Lentes coloridas filtrantes: pode ser usada nos casos em que existam deformidades do segmento anterior, principalmente leucomas ou para diminuir a fotofobia nos casos de albinismo ou aniridia. São mais usadas as lentes gelatinosas, que podem ser incolores ou coloridas, com ou sem pupila preat, dependendo da indicação.

Referências bibliográficas

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  • Moreira, Saly M.B., Moreira, Hamilton.: Lentes de contato.2a edição : Cultura médica,1988, pág. 249-258.
  • Donzis, Paul B., Weissman, Barry A., Demer, Joseph L. : Pediatric contact lens care. Clinical contact lens practice; chapter 51.